Sapatos Furados, Caminhos Livres
Uma corrida de 10 km no Parque Olhos d’Água, em Brasília e uma água de coco. O que era para ser algo prosaico se revelou momento reflexivo e aprendizagem. Uma frase na camisa do jovem que me atende atiça minha imaginação: “O sistema não é falho, ele é programado para o seu fracasso.”
A curiosidade me inquieta e começo uma conversa. Me conta que tem 22 anos. Pergunto o que significa aquela frase. Ele se vira, me olha com firmeza e diz: é porque assim é. Insisto, suavemente. Assim como? Ele explica que mora em Planaltina. Que muitos de seus amigos estão mortos ou presos. É assim que o sistema está programado para gente como ele, mas que vai fazer diferente, não irá para onde o sistema quer.
Na mesma hora, me vem à cabeça a música da Legião Urbana. A história de João de Santo Cristo. Um nordestino sonhador que chega a Brasília, mas não encontra oportunidades; só violência, especialmente policial. E morre num duelo movido por amor e ausência de qualquer esperança que explode no corpo e na alma. Penso no Brasil. No quanto ainda precisamos caminhar para garantir oportunidades mais justas para nossas crianças e jovens. Um mundo inteiro me atravessa. Inclusive a minha própria vida.
Sem pensar muito, digo que a atitude dele me parece sábia. Ele confirma: “A maioria enxerga uma encruzilhada. Bicos, subemprego ou CLT; do outro lado, o crime. Mas que salário? Então... o crime.” Mas ele não. Ele escolheu trabalhar, inclusive no domingo. Conta que a camisa que está usando foi feita pelo irmão. Escuto um orgulho familiar — uma luta silenciosa e cotidiana. Lembrei de mim mesma. Vim de família de agricultores. Quando criança pequena andava descalça, ou com sapato de lona que minha mãe costurava. A casa era de chão batido. Mais crescida, já na escola, usava sapatos, muitas vezes furados.
Ele sorri. “Sei o que é.” Pergunto se ele também já usou papelão (como uma palmilha) para evitar de o pé encostar no chão. Ele diz: “não cheguei a tanto”, com certa superioridade. Rimos. Ficamos ali, refletindo sobre os sistemas e suas prisões. E sobre a hipocrisia da política, especialmente da direita, que finge se ofender quando se afirma que ela defende os ricos. Será que eles sabem o que é atravessar a vida na pobreza? Nem imaginam.
Penso, tenho quase 70 anos, cabe talvez a mim dizer dos caminhos que trilhei, das portas que se abriram. Dos sapatos furados ao que consegui foi um caminho e tanto. Sem muito pensar, digo: o mais importante foi ter orgulho de ser quem eu era. Nunca desejei o mundo dos outros, especialmente dos ricos — roupas de grife, clubes, pais letrados. Eu queria fazer as coisas do meu jeito. Um pouco de rebeldia, na linha da frase “sei que não vou por aí – Paulo Gracindo, recitando Cântico Negro.
Mas é preciso reconhecer que nada é fácil. Talvez não baste só a autonomia do ser. Mesmo assim, sigo acreditando que precisamos aprender a não nos deixar esmagar pelos sistemas sociais. Eles existem. São reais. Bom aprender a lidar com eles — se acreditamos neles, nos esmagam, ricos ou pobres. Encarcerados, a diferença entre ricos e pobres está apenas no conforto da cela. A prisão dos ricos parece mais acolchoada. Mais climatizada. Mas é cela também.
Descobri que não desejar o que os sistemas sociais queriam que eu desejasse facilitou encontrar a minha autonomia e um caminho para seguir vivendo com meus próprios pés, mesmo com sapatos furados, durante um certo tempo.
E foi um jovem de 22 anos que me lembrou do caminho. Com sua camisa. Com sua fala. Com seu estar ali. Só me restou dizer a ele: escreva. Seja escritor. Compartilhe as inquietações do seu mundo. Ensine isso a mais gente. Especialmente àqueles que não têm a menor ideia do que é enfrentar a vida como povo pobre.