Fratelli Tutti: o legado político de Francisco que o mundo não pode ignorar

Está em curso uma homenagem planetária ao legado do Papa Francisco. Verdadeira egrégora de boas palavras, citações e reflexões que tomam como ponto de partida a sua energia de simplicidade e a defesa dos mais vulneráveis. Mais de 200 líderes políticos e dezenas de chefes de Estado são esperados em Roma neste sábado para o funeral. Diante de tantas solenidades e rituais de reverência global, uma pergunta incômoda se impõe: que sentido terá tudo isso se continuarmos a ignorar a lição essencial de Francisco — a política como expressão do coletivo, da ética, do bem comum e do cuidado com o outro?

A encíclica Fratelli Tutti (Fraternidade e Amizade Social) se destaca como lição potente para tempos de crise democrática. Publicada em 2020, em meio à pandemia, o documento reconhece que as democracias contemporâneas enfrentam uma crise estrutural: avanço de tendências autoritárias, captura do poder político por interesses privados, enfraquecimento da participação popular e fragmentação do tecido social. Como caminho, propõe a reconstrução das relações sociais com base na fraternidade universal, princípio que reconhece a interdependência entre todos os seres humanos e a centralidade da dignidade da pessoa.

Enfrentamento ao mercado como dogma

A mensagem traz a urgência de enfrentamento da colonização das democracias pela lógica de mercado que esvazia o compromisso com os vulneráveis. Problematiza as tendências de mercantilização da vida, privatização dos bens públicos e a redução do papel do Estado. Francisco afirma que o mercado não pode substituir o compromisso político com a justiça e com a solidariedade: “O mercado, por si só, não resolve tudo, embora às vezes queiram fazer-nos crer neste dogma de fé neoliberal”.

A proposta resgata a noção clássica de bem comum, frequentemente esquecida em um tempo marcado por individualismo e utilitarismo. O Papa insiste que não há bem pessoal fora do bem comum, em linha com o conceito de interesse bem compreendido de Alexis de Tocqueville, autor clássico sobre democracia. O apelo aos políticos deve ser entendido como expressão concreta da urgência do apoio à superação de agendas auto interessadas e a abertura verdadeira à participação da sociedade nas escolhas públicas.

Fraternidade contra muros e fronteiras

Por fim, a Encíclica recusa qualquer fechamento nacionalista e clama por uma cultura do encontro entre povos e culturas. A fraternidade universal se distancia fortemente dos nacionalismos fechados, do racismo e da xenofobia que têm crescido em várias democracias ocidentais — inclusive no Brasil. Ao propor a amizade social como forma de convivência pública, o Papa convida as democracias a se libertarem do medo do outro e da construção de inimigos internos ou externos. Contra muros e guerras, ele afirma: o futuro democrático será solidário ou não será. Trata-se de reconstrução do pacto social a partir de um novo paradigma de convivência que reconheça a dignidade de cada ser humano e a urgência de cuidar do mundo como casa comum.

Um legado que exige resposta coletiva

Agora Francisco não está mais entre nós, e sua contribuição para a luta democrática ainda não é totalmente conhecida. Sua mensagem, exemplificada na Encíclica Fratelli Tutti é um bálsamo de esperança. Resta saber se teremos número suficiente de lideranças políticas e econômicas, organizações sociais e cidadãos dispostos a escutar, lutar e realizar mudanças. Seu diagnóstico é claro: o futuro está em risco, precisamos agir — e agir juntos. Afinal, “ninguém se salva sozinho”.

 

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